Para o povo judeu, o conceito de história não se limita a uma sucessão de
eventos e seu relato. A história judaica, em seus primórdios, é uma história
sagrada, que começa com a escolha do povo por Deus (Iavé) e se orienta para o
cumprimento da promessa divina de que, por meio desse povo, Deus beneficiará
todas as nações. No decurso dessa história, os sábios judeus incorporaram aos
livros sagrados um amplo corpus de textos que atualmente constituem o fundamento
de sua religião.
Período bíblico
A Bíblia hebraica - que, à exceção de alguns livros, coincide essencialmente
com o Antigo Testamento cristão -- narra os fatos fundamentais da história do
povo judeu, a partir do momento transcendental de sua eleição e da aliança com
Deus. Os judeus dividem sua Bíblia em três partes: a Lei (Torá), os Profetas
(Neviim) e os Hagiógrafos (Ketuvim).
Aliança e eleição
O patriarca dos hebreus, Abraão, morava na cidade de Ur, na Caldéia, junto à
foz do Eufrates, no século XX antes da era cristã. De lá, partiu para o norte,
com seu pai, e recebeu a ordem de Deus: "Deixa teu país, tua parentela e a
casa de teu pai, para o país que te mostrarei. Eu farei de ti um grande povo,
eu te abençoarei, engrandecerei teu nome; sê tu uma bênção!" (Gn 12:1-2).
Após a chegada de Abraão à terra de Canaã (mais recentemente conhecida como
Palestina, para os judeus Terra de Israel, e onde hoje se localizam o Estado de
Israel e a Jordânia), Iavé estabeleceu com ele uma aliança: "À tua
posteridade darei esta terra, do rio do Egito até o grande rio, o rio
Eufrates" (Gn 15:18). E acrescentou: "Eu multiplicarei grandemente a
tua descendência, de tal modo que não se poderá contá-la" (Gn 16:10). Como
sinal dessa aliança lhe ordenou: "Que todos os vossos machos sejam
circuncidados" (Gn 17:10).
Abraão, seu filho Isaac e seu neto Jacó constituem a linha patriarcal de
referência do povo judeu, fiel à aliança divina. Jacó recebeu do Senhor um novo
nome, Israel, e de seus 12 filhos originaram-se as 12 tribos do povo judeu, os
descendentes de Israel, ou, como se chamavam, os "filhos de Israel"
(Bene Israel).
Êxodo e estabelecimento em Canaã
A segunda etapa decisiva da história do povo judeu começou com sua libertação
da escravidão no Egito (século XIII a.C.), onde se haviam estabelecido na época
da grande seca. Moisés foi o líder que, por ordem de Iavé, conduziu a marcha de
quarenta anos através do deserto para voltar a conquistar a terra de Canaã.
Durante a travessia do deserto, Moisés fixou a lei judaica, cujo núcleo foram
os Dez Mandamentos, gravados nas tábuas recebidas de Deus no monte Sinai, que
abarcavam as crenças, a moral, os rituais e a organização civil do povo. Essa
lei, a Torá -- também chamada lei de Moisés, ou lei mosaica --, está contida no
Pentateuco (Chumash), os cinco livros que constituem a primeira parte da
Bíblia, e viria a ser a fonte de coerência e unidade do povo judeu e, todos os
tempos e lugares. Segundo a tradição, ainda nos tempos de Moisés surgiu a lei
oral, que se transmitiu dessa forma ao longo de gerações e só foi registrada
por escrito muitos séculos depois.
Uma vez estabelecidos em Canaã, a Terra Prometida, cada tribo em seu próprio
território, os hebreus sofreram a influência do paganismo e os ataques de
filisteus e moabitas. Surgiram então os juízes, como Débora e Sansão, que
lideraram o povo em épocas de crise, na luta contra os inimigos e na condução
de um modo de vida adequado às leis da aliança. Entretanto, fez-se necessária a
reunificação das 12 tribos, e Saul foi ungido rei no século XI a.C. Davi, seu
sucessor, conquistou Jerusalém, transformou-a em capital do reino e para lá
levou a Arca Sagrada, símbolo da aliança com Deus. Salomão, filho de Davi,
construiu o primeiro templo, em Jerusalém. Com sua morte, o reino foi novamente
dividido: Israel, no norte, formado por dez tribos, assimilou elementos
heréticos no culto e logo sucumbiu, invadido pelos assírios. Sua população foi
deportada, e as dez tribos desapareceram desde então da história judaica
(várias hipóteses, fantasiosas ou não, têm associado etnias contemporâneas à
descendência dessas tribos). O reino de Judá, no sul, centrou-se em Jerusalém e
manteve-se fiel às tradições. Os judeus de hoje descendem principalmente dos
habitantes de Judá.
Nessa época de decadência religiosa, política e econômica surgiram os grandes
profetas de Israel -- Elias, Amós, Isaías -- que exortaram o povo a retornar à
fé tradicional. A visão da história como instrumento de Deus, que faz cair a
desgraça sobre o povo judeu como castigo pelo descumprimento da aliança, foi em
parte obra dos profetas.
Exílio e restauração
No início do século VI a.C., o rei babilônio Nabucodonosor destruiu o templo,
saqueou Jerusalém e deportou sua população para a Babilônia. Este novo exílio
espiritual uniu o "restante de Israel" sob a prédica do profeta
Ezequiel, dando início a uma restauração religiosa que preparou uma outra, de
caráter político. A conquista da Babilônia por Ciro, rei dos medos e dos
persas, permitiu aos hebreus retornar à Terra Prometida, no ano 538 a.C., e
reconstruir o templo de Jerusalém, em 515 a.C. Grande parte do povo, no
entanto, continuou espalhado do Egito à Índia, como numa prefiguração da
posterior diáspora (dispersão).
Essa restauração religiosa e política é considerada por alguns autores como a
verdadeira origem da unidade espiritual do povo judeu. Seu grande artífice foi
Esdras, sacerdote dos judeus da Babilônia, que foi enviado pelo rei persa
Artaxerxes II a Jerusalém para controlar a observância da lei mosaica,
reconhecida, em seu caráter civil, para os judeus. Esdras fez renovar a aliança
com Iavé mediante a leitura da lei para o povo durante sete dias (e, de maneira
constante, duas vezes por semana).
Também renovou o culto no novo templo, embora continuasse o ensino nas sinagogas
locais, e alentou a esperança, pregada pelos profetas, na vinda de um messias
que instauraria o reino de Deus.
Períodos helenístico e romano
A influência grega teve início com a conquista da Palestina por Alexandre o
Grande. Posteriormente, o povo judeu alternou longos períodos de dominação estrangeira com breves períodos de independência. Um dos episódios mais
importantes dessa fase foi a revolta dos Macabeus contra os selêucidas
helênicos, sob Antíoco IV, liderada por Judá. Vitoriosos, os judeus purificaram
o templo em 164 a.C. (evento comemorado até hoje na festa de Hanuká) e
instauraram a dinastia dos Asmoneus.
No ano 63 a.C. o romano Pompeu conquistou Jerusalém. Entre os grandes encraves
judaicos dessa época destacam-se os da Síria, Babilônia e Alexandria, no Egito.
Em Alexandria, o Pentateuco foi traduzido para o grego. Segundo a tradição,
setenta sábios, totalmente isolados uns dos outros, fizeram simultaneamente
setenta traduções absolutamente idênticas, chamada Septuaginta ou Bíblia "dos
setenta".
Durante a dominação romana, Jesus de Nazaré reuniu um grupo de discípulos e
iniciou a pregação de suas idéias. Depois que ele morreu na cruz, seus
seguidores acabaram se desligando do judaísmo para constituir a igreja cristã.
Roma sufocou diversas revoltas judaicas e, no ano 70 da era cristã, o templo de
Jerusalém foi arrasado. No ano 73, caiu o último baluarte da resistência, a
fortaleza de Massada, na margem do mar Morto, quando seus defensores, cercados,
preferiram cometer suicídio coletivo a cair prisioneiros.
Com a perda dos últimos vestígios de soberania, teve início a diáspora, a
dispersão do povo judeu, que encontrou na religião um fator de preservação e
unidade. Conta-se que Iochanan be Zakai conseguiu escapar do cerco de
Jerusalém, levado por seus discípulos num ataúde. Apresentando-se ao governador
romano, prometeu-lhe obediência e, em troca, pediu que lhe fosse permitido
criar um centro de estudos judaicos em Iavne. Reunindo sábios e escribas, Iavne
foi o núcleo da preparação judaica para sobreviver à dispersão, tendo a lei e a
tradição como território, onde quer que se encontrassem os judeus.
Período rabínico
Talmude. O longo período rabínico, que os historiadores situam entre os séculos
II e XVIII, caracterizou-se pela elaboração, pelos rabinos (mestres de
judaísmo), do Talmude.
Na primeira época, chamada dos professores (tanaim), surgiram figuras como Judá
ha-Nasi, da Palestina, que no início do século III fixou por escrito a lei
oral: coleção de regras, comentários, interpretações e paradigmas baseados na
Torá, preparada pelos rabinos Akiva, Meir e outros. Essa compilação escrita
constitui a Mischná, cuja autoridade, diziam os sábios, como a da própria Torá,
remonta ao Sinai. Na época seguinte, a dos intérpretes, ou dos amoraim, foram
feitos comentários à Mischná, chamados Guemará. Juntas, a Mischná e o Guemará
formam o Talmude.
Houve duas versões do Talmude, de acordo com a procedência do Guemará: o Talmud
Ierushalmi (de Jerusalém) e o Talmud Bavli (babilônio). Esta última versão, que
teve seu auge nos séculos V e VI, exerceu grande influência durante a Idade
Média e é a adotada pelo judaísmo atual. O Talmude constitui fundamentalmente
um esforço dos rabinos para adaptar os preceitos da lei à vida cotidiana de
comunidades extremamente dispersas. Seus ensinamentos e conteúdo dividem-se em
duas partes: Halaká, essencialmente normativa, e Hagadá, que inclui narrativas,
parábolas etc., destinadas a inspirar e a fortalecer o povo.
Sefarditas e asquenazitas
Sobre uma base religiosa comum, a cultura judaica viu desenvolverem-se na
Europa, durante a Idade Média, dois grandes ramos: sefarditas e asquenazitas.
Os sefarditas, ou sefaraditas (sefaradim) seguiram a tendência babilônica e
receberam a influência dos muçulmanos, com quem conviveram na Espanha. Do
século XI ao XIII, quando se restabeleceu o cristianismo, os judeus da
península ibérica gozaram de boas posições e prestígio, contribuindo como
conselheiros, poetas, cientistas e filósofos para o florescimento econômico e
cultural da chamada idade de ouro. Após as conversões forçadas (os judeus
convertidos eram chamados cristãos-novos, ou marranos, que significa
"porcos"), durante a Inquisição, os judeus acabaram expulsos da
Espanha, em 1492, e de Portugal, em 1497.
Os asquenazitas (ashkenazim), radicados na França e na Alemanha, adotaram o
Talmud Ierushalmi e mantiveram estreito contato com a cultura cristã. Dos
asquenazitas surgiram duas correntes místicas: a cabala (provavelmente de
origem hispânica), desenvolvida nos séculos XII e XIII e relacionada com o
esoterismo ocidental; e o hassidismo, no século XVI, que buscava uma forma de
crença mais espontânea, mais liberta dos rigores do estudo e dos rituais,
servindo assim aos judeus mais desfavorecidos das pequenas cidades e aldeias da
Europa central e oriental. O hassidismo prolongou-se até a época contemporânea,
preconizando a fé piedosa, o fervor (hitlaavut), a priorização da
"intenção" (kavaná) sobre o rito e a importância do "aqui e
agora" na experiência religiosa.
De um modo geral, a Idade Média foi para os judeus um período de perseguições e
massacres. Acusados de envenenarem poços, causando a peste negra, de fabricarem
o pão ázimo da Páscoa com o sangue de jovens cristãos, estereotipados como
malditos, demônios e judeus errantes, foram obrigados ao batismo, ou então
perseguidos e mortos pelos cruzados, queimados no interior de sinagogas -- como
em York, na Inglaterra, em 1190 -- e expulsos de seus lares e de seus países.
Imbuídos de uma fé radicada em sua identificação com o destino comum e com a
prática judaica baseada na aliança, muitos judeus resistiram à pressão
crescente de assimilação, muitas vezes preferindo morrer a abjurar sua fé.
Morriam Al kidush haShem, pela santidade do nome de Deus, proferindo a antiga
oração de uma frase só que é até hoje a síntese da fé judaica: Shemá Israel,
Adonai Eloheinu Adonai echad (Ouve, ó Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é
Um).
A esperança de redenção levou a muitos caminhos, como o hassidismo, o
misticismo da cabala e, no século XVII, ao messianismo, a crença na vinda
imediata do Messias, então personificado num judeu de Esmirna, Shabetai Tsevi.
Multidões histéricas acreditaram que a redenção era iminente, e desfizeram-se
de seus bens para seguir o "messias" em sua jornada à Terra Santa.
Mesmo a desmistificação do falso Messias, que se converteu ao Islã, não abalou
seus seguidores, que acreditavam ser este o caminho de sofrimento pelo qual ele
traria a redenção.
O fim da Idade Média, o advento de idéias libertárias, do racionalismo, dos
direitos do homem, trouxe esperanças de emancipação que acabaram traídas pelo
surgimento de um anti-semitismo doutrinário e ideológico.
Período moderno
As idéias do Iluminismo, no século XVIII, exerceram grande influência sobre o
pensamento das comunidades judaicas da Europa central e oriental, que
constituíam então o centro do judaísmo. As esperanças messiânicas haviam cedido
lugar ao desejo de uma realização pessoal e nacional de natureza claramente
terrena, idéias que se plasmaram no movimento conhecido como Haskalá
(Ilustração).
A figura mais destacada desse movimento foi Moses Mendelssohn, que atingiu
posição preeminente nas letras alemãs com sua tradução da Bíblia para o alemão,
e que defendia uma religião universal centrada na razão. As gerações judaicas
seguintes dividiram-se, na prática religiosa, entre a corrente ortodoxa e a
reformista (e, mais tarde, a conservadora, a reconstrucionista, a
neo-ortodoxa), enquanto se mantinha a influência do hassidismo.
No fim do século XIX, Theodor Herzl, judeu húngaro, jornalista em Viena, deu
estrutura política e institucional ao sionismo, movimento em favor do
estabelecimento de um estado judaico. Um dos fatores que apressaram o
reconhecimento universal da necessidade de uma solução nacional para a questão
judaica foi a tragédia do chamado holocausto.
A ideologia nazista surgiu na Alemanha, berço do Iluminismo e um dos países em
que os judeus mais se haviam integrado à cultura local. Os nazistas pregaram
como ideologia a eliminação física de todos os judeus da Europa, no que
chamaram, operacionalmente, de "a solução final". A revivificação dos
guetos, superpovoados e com péssimas condições de sobrevivência, deportações em
massa para campos de concentração, câmaras de gás e fornos crematórios,
fuzilamentos coletivos e experiências médicas desumanas levaram à morte seis
milhões de judeus, mais de um terço da população judaica mundial.
Esse trágico cenário deu relevância à idéia sionista, versão contemporânea e
política do sonho milenar judaico de retorno à Terra Prometida. Em novembro de
1947, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou a partilha da Palestina em
dois estados, um árabe e um judaico. O movimento iniciado por Herzl culminou,
assim, com a proclamação do Estado de Israel, em 1948.
Atualmente, os principais núcleos populacionais judaicos encontram-se nos
Estados Unidos, em Israel e na Comunidade dos Estados Independentes (CEI).
Parte considerável da comunidade judaica da antiga União Soviética pediu visto
de emigração e, no início da década de 1990, mais de 400.000 judeus emigraram,
principalmente para Israel. Quase a totalidade da comunidade judaica da
Etiópia, negros africanos que praticam o judaísmo há cerca de 2.500 anos,
emigrou para Israel nas décadas de 1980 e 1990.
Apesar da secularização e do liberalismo que hoje predominam em suas
instituições, o povo judeu continua apegado a sua religião, ou seja, a suas
tradições e ao legado de sua história.
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